Tertúlia - Como jogar no Trabalho
Olá pessoal! Voltamos para mais uma tertúlia, depois de termos cá
o Francisco Maia, o maior empreendedor do século XIX, vamos falar com o Micael
Sousa, do canal Jogos no Tabuleiro, portanto provavelmente a cara que mais
vezes aparece na TV lá de casa.
Micael antes de mais quem és tu?
MS: Sou um
gajo mais ou menos com a mania que sei umas coisas, que não consigo estar
parado e que não tenho muito medo do errar. Aliás, os jogos têm esse lado
maravilhoso de nos permitir errar sem consequências negativas. O problema é que
eu também faço isso na vida real. Meto muitas vezes o pé na poça, mas tento
aprender com isso. Na prática sou um estudante profissional, investigador,
doutorando, que dá umas aulas, formações, participa e colabora com vários
projetos “sérios” de jogos, mas com outros menos sérios também. E para além
disso tenho uma vida normal e aborrecida como a de todas as pessoas. Por vezes o
banco mete-me eng.º no cartão, o que me obriga a ter de reclamar e pedir para
que fique só Micael.
Eu adoro o teu canal! Essencialmente porque
exploras os mesmos jogos que eu quero explorar, de onde pegaste este gosto
pelos eurogames e pelos euro/económicos? Há algum tipo de jogo que, acabando
isto da pandemia, tens muito interesse em explorar?
MS: Tantas perguntas! Vou fazer como os políticos – que sou também
ainda que da terceira divisão -, escolher só aquelas que me dão jeito.
Sempre joguei muitos jogos. No PC era completamente fascinado por
jogos de estratégia. Agora, por falta de tempo e porque já tenho de passar
demasiado tempo agarrado ao PC por causa do trabalho, acabei por deixar esses
jogos de lado. Optar pelos eurogames, pelos jogos económicos e afins pareceu-me
uma transposição natural dos meus hábitos de jogos para o formato analógico. Também
tinha por hábito fazer LANs com amigos e jogar online, mesmo quando as ligações
de internet não o recomendavam. Basicamente, os jogos económicos e alguns
eurogames são muito semelhantes aos jogos de estratégia de PC. Temos o caso do
Civilization que surgiu em 1980 e revolucionou este tipo de jogos no formato
analógico, mas que depois em 1991 passou para o formato digital e transformou-se
num marco na indústria. Temos o caso do Europa Universalis que também se baseou
num jogo de tabuleiro, e hoje é um dos jogos digitais de estratégia mais
apreciados e de culto. A vantagem dos jogos analógicos é que quando jogados com
o grupo ideal, e quando a materialidade dos jogos ajuda a melhorar a dinâmica
de jogo, temos uma experiência única que vamos querer repetir ao viajarmos para
o “circulo mágico”.
É pá! Tantos! Tenho muita vontade de explorar, principalmente,
alguns jogos que não são eurogames, pois esses vou conseguindo jogar por casa
com a esposa. Quero mesmo voltar a ter 4 a 6 pessoas à volta de um “caixa de
areia”, de um jogo épico que no final narre uma epopeia e nos fique na memória.
Quero muito voltar a jogar “Western legends”, “Game of Thrones the Bardgame:
2nd edition”, “Pax Porfiriana” e a segunda edição do “Eclipse”. De novo quero
perder-me com o “Xia: Legends of a Drift System”, “Root”, “Merchants and
Marauders” e “Pax Pamir”. Dentro dos eurogames mais económicos quero muito
jogar o “Die Macher”, “Arkwright”, “Chicago 1875” e tantos outros que tenho em
espera.
De onde surgiu a tua ideia do canal de Youtube?
MS: Penso que da mesma maneira que todos os outros. Um pouco de
inconsciência e excesso de autoestima. Pronto, a cena da autoestima excessiva é
só comigo. Inconsciência porque não se tem a noção do trabalho que dá, do tempo
que se gasta e dos custos com equipamentos, mesmo que sejam básicos. A parte da
autoestima porque temos de estar preparados para lidar com os nossos erros.
Falar sobre algo e isso ficar registado é um excelente exercício de treino, mas
também de preparação para as críticas, porque há por aí gente no hobby, na
indústria e academia que sabe muito mais que nós.
Também te podia dizer que foi por uma descarga de altruísmo, para
partilhar e contribuir para o hobby porque não havia nada feito em Portugal,
porque tinha algo de novo a acrescentar. Tento convencer-me a mim próprio que
foi isso. Mas talvez tenha sido mais para experimentar, ver se também consigo
fazer. É inevitável imitar alguns dos principais Youtubers internacionais, mas
em mau. Mas pronto, sim, foi porque praticamente ninguém falava dos jogos que
eu gostava em português, embora se tenha de fazer jus ao Orlando Sá que já
tinha uns vídeos bem porreiros sobre jogos mais complexos. Só soube depois.
Agora a falar um pouco mais a sério, tu como
uma figura conhecida no nosso hobby em Portugal, como vês a nossa evolução? Eu
por exemplo, vejo o hobby por aqui bem e de muito boa saúde tanto a nível de
jogadores, como de designers e editoras, tudo a crescer.
MS: Serei assim tão conhecido? Não sei, talvez por algumas centenas de
pessoas. O que não quer dizer que seja mau, embora não seja bom para quem
queira enriquecer com isto. Por outro lado é bom, pois significa que quando for
a uma convenção - quando isso for possível novamente - talvez possa ter alguém
com quem conversar e jogar. Adoro falar sobe jogos.
É polémico dizer que a tendência para jogar jogos mais pesados é
uma evolução. Mas não me importo. Tudo o que é consumo de massas tende a
afastar-se do que é mais sofisticado e complexo. Acabei de dizer algo ainda
mais polémico… Mas sinto isso nas outras criações, no cinema, na música, na
literatura, etc… Para mim cada pessoa deve consumir o que quiser. Mas também
não defendo aquela máxima redutora de “Gostos não se discutem”. Os gostos
discutem-se e ainda bem, caso contrário não tínhamos hobby. No entanto os
gostos não se devem impor, o que é uma coisa muito diferente.
Quando dizes evolução penso que te estás a referir ao crescimento
do interesse por jogos de tabuleiro em Portugal. Pelos dados que tenho lido,
mas também pelo meu contacto direto no canal de Youtube, pelo lado associativo
com os Boardgamers de Leiria, com os projetos e aulas que vou desenvolvendo não
há dúvida que começa a estar na moda. No entanto não acho que seja uma moda
incontornável em Portugal. Ainda não está nesse ponto. Enquanto noutros países
vemos manifestações em programas televisivos de grande audiência e de celebridades
que falam de jogos de tabuleiro modernos, de jogos como Catan e Dungeons &
Dragons, por aqui a coisa não é bem assim. Ainda vemos muitas referências a
monopólios, riscos, unos e triviais como o standard. Vemos celebridades
agarradas a jogos do mercado de massas, tentando associar aquilo às tendências
internacionais de jogos de tabuleiro. Nós que estamos no hobby sabemos que não
é isso que está a gerar uma nova era de ouro dos jogos de tabuleiro.
Mas obviamente que está a surgir um crescimento. E com esse
alargar de número de jogadores seguramente muitos depois vão dar os passos
seguintes para os jogos mais complexos e desenvolvidos. Tenho notado mais
dinâmica no meu canal, mas também não sei se é pelo crescimento natural que
qualquer projeto tem quando é constantemente alimentado.
Em conversa já me explicaste que só fazes
reviews de jogos que gostas, nunca te apeteceu fazer uma review de um jogo que
odiaste só para achincalhar no jogo?
MS: Sim. Só faço reviews de jogos que gosto ou acho interessantes por
algum motivo. As reviews completas são mesmo só sobre jogos da minha eleição.
Ainda não estou ao serviço de nenhuma editora e duvido que isso alguma vez
aconteça, pois não me parece haver ainda dinheiro envolvido que o justifique
nem que o meu canal seja assim tão relevante. Mas para poder ter uma análise
mais crítica de jogos que eu gosto mais ou menos, criei as análises em 3
minutos, onde posso falar de coisas que gosto e não gosto. Embora esse tipo de
vídeos também seja um exercício de treino para tentar ser o mais conciso
possível. Por vezes os jogos que meto nessa rúbrica não têm qualquer problema
de maior.
Eu estou sempre a brincar com o monopólio, mas é mais pela
brincadeira mesmo. Dá imenso jeito para fazer memes. Acho difícil fazer uma
review séria de um jogo que eu não goste, à exceção de quando é algo feito para
ser humor. Porque dá tanto trabalho fazer uma review que o motivador tem de ser
gostar do jogo, pelo menos enquanto não há dinheiro envolvido. Isto porque
quando uma editora oferece um jogo eu não vejo isso como pagamento. Muitas das
vezes, se não oferecessem o jogo eu nem sequer o ia experimentar. Logo, não o
iria referir nos vários tipos de vídeos que faço. Sou claro nisto no contacto
com as editoras e tento referir sempre nos vídeos quando os jogos são
oferecidos.
Uma vez que tens um conhecimento de vários
jogos, que tipo de mecânica gostavas de ver implementada e que ainda não pegou?
Eu por exemplo gostava de ver chegar ao ponto rebuçado esta ideia de uma campanha
evolutiva num eurogame, algo que o Pfister me parece que anda a tentar.
MS: Essa é muito complicada de responder. Se pensarmos em mecânicas e
mecanismos eles são infinitos. Estão sempre a surgir novos e em múltiplas
combinações. O que eu acho mais interessante é quando os temas/narrativas são
integrados com as mecânicas/mecanismos. Isso não tem de implicar usar um
mecanismo novo. Se pensarmos nos mecanismos como os pequenos elementos que
combinados constroem um jogo, mas que ao mesmo tempo são metáforas temáticas
num sistema de jogos, o difícil será conjugar tudo de forma coerente. Acho que
é aí que reside o segredo da coisa. Talvez seja por isso que os jogos do Martin
Wallace sejam tão interessantes, pois ele consegue esse equilíbrio.
Falando daquele que é publicamente o teu jogo
preferido, o Monopólio! Qual o melhor? E já agora porquê?
MS: Já escrevi imenso porque me irrita o monopólio, até em jornais
nacionais. Estou sempre com receio de receber ameaças de morte por isso ou de
acordar com uma cabeça do homenzinho de monóculo, bigode e cartola ao meu lado
de manhã.
Mas falando a sério. Eu gosto imenso de jogos e tenho imensa pena
de quando era mais jovem não ter tido acesso a alguns dos jogos que hoje
conheço. Tinham sido verões bem mais interessantes.
Não tenho um jogo preferido. Tenho, no entanto, vários jogos que
gosto de jogar em vários momentos, dependendo do contexto, de quem são as
pessoas com que vou jogar e do tempo disponível. Gosto muito do Brass, do
Lisboa e do Mombasa. Mas também gosto de jogar um euro médio menos conflituoso
com a esposa, um Village, Grand Áustria Hotel ou Russian Railroads. Em
oposição, adoro fazer umas noites épicas de sacanagem e alianças com amigos de
há muitos anos com o Game of Thrones ou com o Archipelago.
Explica-nos um bocadinho o teu trabalho com
Serious Games.
MS: Bem. Essa é difícil, pois é uma enorme área de investigação e
trabalho. Mas vou tentar resumir. Basicamente os serious games são os jogos que
são criados para atingir determinados objetivos sérios, mas onde se tenta
manter a “diversão”. Isto é imensamente difícil de fazer porque exige
conhecimento e equipas multidisciplinares. Não é simulação pois temos de
cativar os participantes e pode dispensar alguns dos elementos realistas, mas
também não são jogos desprovidos de sentido, têm de contribuir para gerar alguma
coisa, nem que seja consciência para um tema. Os serious games partem do princípio
que colocando os jogadores a interagir diretamente eles podem aprender mais ou
desenvolver coisas que não fariam de outro modo, sendo algo que lhes dê prazer.
Podem ser aplicados a todas as áreas de atividade, mas estão muito associados à
educação. No meu caso, tenho aplicado principalmente ao planeamento urbano e
territorial para gerar processos mais participativos, onde os jogadores ajudam
a planear o território, pois necessitamos de novas ferramentas cívicas e
técnica de gerar melhores planos para o nosso desenvolvimento.
Podemos gerar serious games desenhando-os do zero ou pegar em
jogos que já existem e adaptar aos fins que pretendemos. Tenho feito as duas
coisas. Tenho participado igualmente noutros projetos de serious games para a
área da educação e saúde.
Uma vez que fazes os teus próprios designs para
resolver diversas situações reais, porque não fazer um design para o hobby?
MS: Quem sabe um dia. Já tive algumas abordagens de editoras que me
falaram disso. Gostava, mas para já não estou com grande disponibilidade para
isso, pois estou com vários projetos de serious games em mãos. Mas vou
colaborando informalmente com algumas editoras na parte dos testes e análises
dos seus jogos. Mas admito que um dia me meto nisso. Só não sei é se alguém irá
querer publicar.
Até onde achas que pode chegar esta tua
intervenção com Serious Games na resolução de desafios reais?
MS: Os jogos não são produtos milagrosos. Não resolvem todos os
problemas da humanidade. Quando combinamos com outras abordagens em diversos
projetos os resultados podem ser muito interessantes. Tenho já casos disso, em que os jogos serviram para desenvolver soft skills, de apoio a aulas
formais, para apoio a projetos de planeamento urbano, para apoiar intervenções
terapêuticas com crianças e idosos. O ideal é estar integrado em equipas.
Admite, isto foi uma boa maneira que tu
arranjaste para estar a jogar no trabalho não foi?
MS: Pois claro. Eu tenho uma experiência profissional variada. Já fiz
um pouco de tudo, tanto nos setores públicos como privados, desde a produção,
passando pela gestão, inovação e ensino. E já experimentei muita coisa, muitas
delas desagradáveis, mas que poderiam ser transformadas em algo muito mais
cativante se existisse abertura para isso. Foi isso que me levou a querer
voltar à academia para explorar o que se poderia fazer com serious games. A
vida é curta e não se podem deixar escapar as oportunidades. No fundo a
felicidade é derradeiro objetivo. Para mim trabalhar em jogos, nem que seja por
um momento curto, já é uma alegria imensa.
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Acabamos por aqui esta tertúlia, acho que não podia concordar mais com o que o Micael foi falando ao longo desta conversa e da transparência com que aborda todos os temas, sendo eles mais ou menos polémicos.
Muito obrigado ao Micael que apesar da
exposição pública, mostra-se sempre acessível e disponível para ajudar
pequenos projectos como este. Não se esqueçam de visitar o canal do Micael, tudo sobre jogos médio/complexos em português, vale bem o vosso tempo:
https://www.youtube.com/channel/UCGNVNi_Zv4NXbfIlYmRHGow
Há que tempos que não deixava um comentário num blogue. Até porque o jogos no tabuleiro começou por ser um blogue :)
ReplyDeleteAinda bem que o Jogos no Tabuleiro começou, fosse como blog ou de qualquer outra forma, é uma excelente fonte de informação para todos nós! Obrigado pela tua contribuição aqui no blog mas acima de tudo pelo teu trabalho com o canal! É uma excelente fonte de informação sobre tudo no nosso hobby e em bom português!
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